Deitei-me no chão, procurando por algo empurrado para debaixo da cama e, ao deixar o ouvido encostar nas tábuas sob mim, escutei através da madeira, dos tijolos, da fiação, do encanamento - distante e abafado, um longo grito.
Era final de outubro, início de novembro de 2020 - as multidões que bombeariam pelas ruas engasgavam os corredores de hospitais ou se trancavam por detrás das portas de casa, uma embolia da vida comum; a maioria de nós havia estagnado na espera de um abstrato alguma-coisa, um Fim da Pandemia, e vivia-se emoldurado pelos limites das paredes. Nesses tempos iniciais de lockdown, meus hábitos de leitura (sobre os quais pretendo eventualmente falar com mais detalhes aqui) eram limitados a pouco mais que terror clássico - a sensibilidade de Poe, as vozes de Stoker guiavam o caminho que tomava a minha escrita e, por mais que a origem do grito que escutara aquele dia fosse, infelizmente, óbvia - a recém-mudada vizinha debaixo, de quem o ódio pelos filhos insistia ser a trilha sonora daqueles meses - a estranha textura que assumira ao se embaralhar e confundir com os murmúrios do prédio contribuía ao imaginário que vinha cultivando e alimentando com essas específicas referências literárias.
“Escutei-o novamente, irmã. O grito”, digitei num arquivo de Word e, partindo dessas poucas palavras escritas em um impulso, improvisei alguns parágrafos, depois dos quais acreditava ter descoberto uma voz que satisfazia minha vontade de brincar com esse meu então amado goticismo. Pelo decorrer dos dias seguintes, encontrei uma narrativa na qual esses parágrafos se encaixariam bem como introdução e na metade de novembro havia concluído uma noveleta chamada O Grito Enterrado em Minha Casa que, até aquele momento, era o texto mais longo que minhas disciplina e consistência tinham permitido completar.
O que seguiria meu costume da época seria postá-lo em meu blog, mas entendia que um texto maior não seria facilmente lido se publicado dessa forma. Procurei pelo processo de formatação e distribuição de e-books na Amazon, mas após ver O Grito diagramado e exibido no kindle, depois de “folhear” e reler seus parágrafos e sentir pela primeira vez a satisfação de ver um trabalho exibido de forma similar a um livro, concluí ser desperdício publicá-lo por conta própria. A noveleta merecia uma coletânea onde se encaixar.
Vasculhei meus textos prontos, avaliei ideias que ainda planejava escrever e descobri que, ao contrário da mistura aleatória e sem propósito de contos que esperava acabar com, acreditava conseguir organizar uma coletânea de materiais composta por textos que se complementavam e conversavam um com o outro de uma forma estilisticamente variada, mas tematicamente consistente. E naquele clima de lockdown em que as limitações da situação mundial impediam que o entretenimento que consumíamos fosse produzido da forma que costumava ser e tudo era criado com algo de caseiro que inspirava um ar excitante de liberdade criativa, fora surpreendentemente fácil escrever e reescrever aquilo que precisava para a coletânea. Em fevereiro, depois de um processo rápido e divertido, estava pronto meu primeiro livro: Belezas Veladas.
Inicialmente acreditando ser impossível encontrar uma editora interessada em publicá-lo, aprendi o mínimo sobre a autopublicação: a primeira versão de Belezas Veladas fora diagramada por mim; sua capa e seu interior compostos por um minimalismo que dizia ser tematicamente apropriado e definitivamente não um limite da minha paciência e capacidade. Mas, com sorte, o livro acabara encontrando um espaço na Skript Editora, pela qual fora lançado numa tiragem limitada em outubro de 2021. E o frio na barriga ao vê-lo, tê-lo em mãos e poder folhear minhas palavras como costumava fazer apenas com as de Escritores de Verdade me proporcionou e, mesmo que mais mornas, ainda proporciona uma inquietação e satisfação que não sei, exatamente, como descrever - uma incapacidade que por si só deve já dizer o suficiente.
E agora que já se passaram mais de dois anos desde os meses nos quais fora escrito, parece-me o tempo apropriado para uma nova versão do livro: um e-book disponível para compra na Amazon e para leitura gratuita de assinantes do Kindle Unlimited.
BELEZAS VELADAS reúne textos de terror, fantasia, suspense e mistério, usando estéticas e medos antigos para discutir e demonstrar preocupações e dores modernas. Ilustrado por mim, o livro inclui:
Duas noveletas, ambas semifinalistas do Prêmio ABERST de Literatura de 2022:
ELIZA - Sofrendo pela morte de sua adorada primeira esposa, um homem é visitado em sonhos por Deus, que lhe diz ser possível trazê-la de volta à vida se assassinar e beber a saliva de três mulheres.
O GRITO ENTERRADO EM MINHA CASA - Deixada só em uma casa isolada após a perda de sua família, uma mulher relata em cartas para sua irmã morta os tormentos que a assombram - iniciados com a descoberta de uma voz gritando por sob sua casa.
Cinco contos:
O JANTAR DO ADORMECIDO - Um sonâmbulo desperta à mesa de jantar. À sua frente, os restos de uma refeição sangrenta. Mas o que foi que comera enquanto dormia?
O CASO DO VISITANTE NOTURNO - Nosso narrador sobe as escadas de 221b Baker Street, mas basta à Sherlock Holmes um breve olhar para concluir que, apesar de ter a aparência de Dr. Watson, aquele homem não é seu amigo.
A MELODÍA METÁLICA DE UM RELÓGIO ÁUREO - Em um breve relato sobre seu ofício, a Morte nos mostra como uma existência eterna afeta a maneira com que escreve.
O VIOLINISTA TRANSPARENTE - Em sua vida-pós-morte, um violinista tenta manter as práticas de sua arte nas noites que lhe são permitidas fora do caixão.
O QUE HÁ DENTRO DE MIM? - Ajoelhada em frente ao vaso sanitário, uma garota enfia os dedos na garganta. Mas o que sai em seu vômito não é o que espera.
E quatro microcontos de terror, escritos em frases únicas: os “HORRORES MONOFRASAIS”. Há, também, um posfácio exclusivo ao e-book, que reflete sobre o ato de reinterpretação e como o lado Alguém-Que-Escreve de uma pessoa atravessa o tempo de forma diferente do lado Escritor.
O livro está disponível aqui.